Um Sistema Especialista para Diagnóstico de Cardiopatias Isquêmicas

Álvaro Rabelo Jr.[1]; Ana Regina Rocha[2]; Agnaldo D. de Souza[1], Antonio A. Ximenes[1]; Nelson Lobo[1]; Dulcinéa Carvalho[1,2]; João Werther C.S. Filho[1], Káthia Marçal de Oliveira[2], Luiz Agnaldo de Souza[1] e Vera Maria Werneck[2]

[1] Fundação Bahiana de Cardiologia, Rua Augusto Viana s/n - Canela,40140-060 Salvador, Bahia. [2] COPPE/UFRJ - Sistemas, Caixa Postal 68511, 21945-970 Rio de Janeiro - RJ


Revista Informédica, 1(1): 5-11, 1993.


Sabemos que a prática médica exige uma constante tomada de decisões[1]. A metodologia clássica de resolução de problemas, que envolve a análise de dados para determinar a explicação patofisiológica dos sintomas do paciente, é uma das partes do processo de decisão. Igualmente desafiante é o processo diagnóstico, entendido pelas questões que se formulam, os testes efetuados, os procedimentos que se realizam e a determinação do valor dos resultados relativos a riscos associados e custos financeiros. É por isso que o diagnóstico envolve não apenas decidir o que é verdade sobre um paciente, mas também quais dados são necessários para determinar o que é verdade. O pro-cesso de tomada de decisão médica envolve, portanto, a coleta de dados, a diagnose e recomendação terapêutica[2]. A coleta de dados consiste em obter a história do paciente, dados clínicos e de laboratório. Os dados clínicos incluem sintomas, que são as sensações descritas pelo paciente, e os sinais, que são dados objetivos e observáveis pelo médico. Os resultados de laboratório geralmente são referidos como achados.. As manifestações se referem a qualquer sintoma, sinal ou achado. Diagnose então, é o processo de usar estes dados para determinar a doença.

A Cardiologia, como outras áreas da Medicina, tem um grande potencial de aplicação da tecnologia computacional baseada em conhecimento (Inteligência Artificial). O processo intelectual usado pelo cardiologista visa realizar diagnósticos a partir de sintomas e evidências descritas pelo paciente que são levantados através de propedêuticas adequadas. Na área de cardiologia, existem experiências de desenvolvimento de sistemas especialistas no que se refere a: sistemas de apoio a decisão de diagnósticos de cardiopatias, sistemas que tratam sinais e/ou imagens geradas por equipamentos cardiológicos e sistemas que monitoram pacientes em unidades de tratamento intensivo. Relatos dessas experiências podem ser encontrados em conferências específicas de computação em cardiologia [3, 4].

Este artigo descreve o projeto Sistemas Especialistas em Cardiologia - SEC (Projeto FBC/FINEP no.. 66940058-00) atualmente em desenvolvimento na Fundação Bahiana de Cardiologia (FBC) em colaboração com a COPPE/UFRJ, destacando-se a experiência obtida na construção de sua primeira versão. O projeto tem como objetivo a construção de um sistema especialista que visa apoiar médicos não cardiologistas no diagnóstico da cardiopatia isquêmica. O sistema justifica-se por ser esta, reconhecidamente, uma das doenças de maior incidência no Brasil e no mundo e por muitas vezes não ser corretamente diagnosticada por falta de um cardiologista no local aonde o paciente vai buscr atendimento. Por outro lado é importantissimo ter-se o diagnóstico correto em curto espaço de tempo, possibilitando assim o tratamento adequado.


O Objetivo do Sistema

A cardiopatia isquêmica é uma doença cardíaca decorrente da diminuição, significativa, do fluxo coronariano devido à formação de placas de gordura (ateroma) em determinados segmentos das artérias coronarianas (segmento proximal, médio ou distal) e/ou redução do calibre por espasmos. A cardiopatia isquêmica pode se apresentar das seguintes formas:

Algumas características particulares das ocorrências de atendimentos de pacientes com suspeita de cardiopatia isquêmica são:

1. Urgência na formulação do diagnóstico e nas medidas terapêuticas a serem tomadas.

O tempo decorrido entre o diagnóstico preciso da dor e a tomada de uma decisão acertada é crucial, devido ao fato de que a maioria das complicações, inclusive o óbito, nos eventos coronarianos agudos ocorre nas primeiras horas. Existem ainda medidas terapêuticas que estão associadas ao tempo, como é o caso da trombólise. A administração de trombolíticos para desobstruir a artéria responsável pelo infarto, se feita nas primeiras horas, tem, aproximadamente, 80% de chance de sucesso. Este índice cai drasticamente até a 12ª hora e, daí em diante, há uma diminuição significativa do benefício trazido pelo seu uso. A própria indecisão do paciente quanto à sua ida a um posto de saúde gera uma perda de tempo inicial. Ao se definir que o paciente deve ser removido para um centro especializado, mais um gasto de tempo ocorre neste deslocamento. Ainda são gastos alguns minutos desde a sua chegada no centro especializado e o início da trombólise. Por isso, deve-se procurar encaminhar o paciente o mais rápido possível para locais com condições de fazer o tratamento adequado.

2. O diagnóstico de eventos agudos da cardiopatia isquêmica está centrado na história clínica do paciente, no exame físico e no eletrocardiograma realizados.

Estes são os elementos básicos e essenciais para a elaboração do diagnóstico com elevada chance de sucesso. Assim, qualquer posto de saúde, mesmo que pequeno, poderia formular um diagnóstico de evento coronariano agudo. O que ocorre é que, muitas vezes, o diagnóstico não é feito pela falta de conhecimento especializado.

Neste contexto, um sistema especialista pode ser de extrema validade, pois, a partir de um grupo de informações básicas iniciais, o sistema pode conduzir um diálogo com o usuário-médico, a fim de levá-lo ao diagnóstico mais provável, além de fornecer uma explicação em linguagem natural do caminho seguido para a formulação do diagnóstico.

Considerando-se esta realidade, o SEC tem como primeiro objetivo o diagnóstico de eventos agudos da cardiopatia isquêmica. Seus usuários serão médicos não especialistas em cardiologia ou em formação na especialidade (internos e residentes). O sistema dará apoio na formulação diagnóstica do problema do paciente e na determinação do tipo e forma de atendimento que lhe deverá ser dado, em função da gravidade de seu quadro clínico. Asssim sendo, o objetivo do sistema é ser utilizado em unidades de atendimento periféricas urbanas, de natureza primária da rede pública de saúde, visando auxiliar o médico não especialista, no encaminhamento de pacientes que requeiram atendimento em uma unidade de referência especializada.


O Sistema SEC

Para a realização das atividades referente a esses objetivos, foi levado em conta na construção do sistema, o quadro clínico do paciente e seu ECG. Três cardiologistas e três engenheiros do conhecimento participaram do processo de aquisição do conhecimento. A experiência obtida no processo de aquisição do conhecimento está relatada em 5.

O SEC é um sistema especialista baseado em regras com tratamento de incerteza. No final do processo é fornecido ao usuário-médico um diagnóstico e a sugestão da medida a ser tomada que se situa em quatro faixas:


Processo de Desenvolvimento e Garantia Da Qualidade

Desde o início do projeto buscou-se que o sistema tivesse um processo sistemático de desenvolvimento e garantia da qualidade, utilizando técnicas modernas de Engenharia de Software. Para isso foi definido um processo de desenvolvimento adequado à construção de sistemas baseados em conhecimento de acordo com os princípios estabelecidos na norma ISO 9000-3 6. Assim sendo, a primeira atividade no projeto foi a definição do documento "Processo de Desenvolvimento do Projeto Sistemas Especialistas em Cardiologia" [7]. Este documento define o modelo de ciclo de vida adotado no projeto, os métodos e ferramentas para construção do produto, a documentação a ser produzida ao longo do desenvolvimento, os procedimentos e métodos para controle da qualidade e gerência do processo de desenvolvimento.

O ciclo de vida definido para o SEC combina prototipagem evolutiva com o ciclo de vida para sistemas especialistas proposto por Hull e Kay[8]. Para modelagem foi escolhido o método KADS (Knowledge Acquisition and Design Structuring) [ 9,10]. Uma avaliação do uso do processo de desenvolvimento do SEC pode ser encontrada em outras publicações[11, 12]. O processo de garantia da qualidade foi estabelecido baseado na ISO 9126 [13], em trabalhos anteriores de um dos autores [14, 15] e na literatura técnica [16-22] considerando-se os atributos relacionados à qualidade de sistemas especialistas.

Os atributos identificados foram divididos em dois conjuntos: atributos relacionados à qualidade externa do produto (percebida pelos usuários finais) e atributos relacionados à qualidade interna (percebida pelos desenvolvedores de software). Os atributos relacionados à qualidade externa do produto foram apresentados aos cardiologistas envolvidos no desenvolvimento do SEC que foram solicitados a identificar, entre estes, os atributos imprescindíveis, os desejáveis e os considerados sem importância para o sistema. Os atributos identificados como imprescindíveis e desejáveis pelos cardiologistas, acrescidos dos atributos de qualidade interna do produto, identificados pelos engenheiros de software, foram, então, definidos como os requisitos de qualidade do SEC. Uma descrição mais detalhada do processo de garantia da qualidade pode ser encontrada em outras publicações[23, 24].

Diferenças entre software convencional e sistemas especialistas determinam peculiaridades na validação destes sistemas. Como nenhum método pode assegurar a correção total de um sistema, decidimos usar uma combinação de vários métodos de validação de forma a ter uma evidência complementar de que o sistema atua conforme o desejado[ 25-27].

A validação do sistema foi feita inicialmente usando validação face a face, onde a equipe do projeto comparou o desempenho do sistema com relação ao desempenho humano. O próximo passo na validação foi realizar análise de sensibilidade onde os especialistas sistematicamente mudavam o valor das variáveis de entrada do sistema, observando seu efeito no desempenho do sistema. Estes dois métodos de validação foram apoiados por prototipagem operacional [28] de forma a acelerar o processo de refinamento do sistema. Para a 2a.. versão do SEC está previsto o uso do teste de Turing e de teste em campo [27, 29].

Uma validação quantitativa foi realizada considerando os resultados obtidos nos testes da primeira versão. Considerando-se as características do nosso sistema, uma decisão de projeto foi buscar um alto nível de sensibilidade para o SEC. Neste momento, para 88 casos de teste, o sistema teve um desempenho conforme o esperado em 80% dos casos.


Conclusões

Atualmente tem-se concluída a 1a.. versão do SEC e iniciou-se o processo de desenvolvimento da segunda versão. Espera-se que em junho de 1995 o sistema já esteja em operação, de forma experimental e controlada pela equipe da FBC, em alguns postos de saúde de Salvador.

Sistemas baseados em conhecimento podem ter os seguintes estilos: assistente, crítico, segunda opinião, consultor, tutor e automático[30]. No que se refere ao processo de diagnóstico, o SEC é do estilo consultor pois emite pareceres sobre condutas a adotar conforme sejam os dados fornecidos sobre o paciente.

Médicos em situações onde deverá ser usado o SEC caracterizam-se pela necessidade de tomar decisões rapidamente e por isso requerem que o sistema tenha uma resposta rápida além de confiável. Portanto, o SEC permite uma entrada de dados simples e ágil, além de responder de forma quase instantânea aos casos formulados. Estima-se que um médico, usuário do SEC, deve gastar entre cinco a dez minutos, no máximo, interagindo com o sistema.


Agradecimentos

Este projeto tem apoio da FINEP, IBM-Brasil e CNPq, aos quais os autores agradecem. Agradecem, ainda, muito especialmente ao Dr. Ruy G. Bevilacqua pelas valiosas sugestões ao projeto quando de sua visita à FBC.


Referências Bibliográficas

  1. Shortliffe,P.; Wiederhold,F. Medical Informatics: Computer Applications in the Health Care; Addison Wesley; 1990
  2. [2] Barr, A.; Feigbaum, E. The Handbook of Artificial Intelligence; Vol. 1 e 2; Addison Wesley; 1986.
  3. Leão,B.deF.; Reategui,R.B. "A Hibrid Connectionist Expert System to Solve Classification Problems"; Computers in Cardiology; IEEE Computer Society Press;1993.
  4. AssanelliD.; Cazzamalli,L.; Stambini,M.; Poeta,M.L; "Correct Diagnosis of Chest Pain by an Integrated Expert System"; Computers in Cardiology; IEEE Computer Society Press;1993.
  5. Rabelo,A.Jr. et al "An Expert System for Diagnosis of Acute Myocardial Infarction", ACM Symposium on Applied Computing, SAC'95; Nashville, Estados Unidos; fevereiro 1995
  6. ISO 9000-3 Quality Management and Quality Assurance Standards - Part 3: Guidelines for the Application of ISO 9001 to the Development, Supply and Maintenance of Software; Setembro 1990
  7. Werneck,V.M.; Oliveira,K.M.; Rocha,A.R.; Processo de Desenvolvimento do Projeto Sistemas Especialistas em Cardiologia; 1994
  8. Hull,L.G.; Kay,P. "Expert Systems Development and Management"; International Conference on Developping and Managing Expert Systems Programs; Washington, USA; Outubro 1991
  9. Mielenga,B.J. et alli Knowledge Acquisition for Expert Systems"; Proceedings of ACAI; 1988
  10. Schreiber,G (ed) Knowledge Acquisition: The KADS Approach for Knowledge Engineering; Academic Press; 1992
  11. Rabelo,A.Jr. et al; "Uma Experiência na Definição, Uso e Avaliação do Processo de Desenvolvimento de Sistemas Especialistas em Cardiologia"; Simpósio Brasileiro de Engenharia de Software - Workshop Qualidade de Software; Curitiba, outubro 1994
  12. Rabelo,A.Jr. et al "Avaliação do 1o. Estágio de Desenvolvimento do Projeto Sistemas Especialistas em Cardiologia"; Publicações Técnicas FBC/UCCV, 1/94
  13. ISO/IEC 9126 Information Technology - Software Evaluation - Quality Characteristics and Guidelines for their Use; Dezembro 1991
  14. Rocha,A.R. Um Modelo para Avaliação da Qualidade de Especificações; Tese de Doutorado; PUC-Rio; Junho 1983
  15. Palermo,S.; Rocha,A.R. "An Experience on Evaluating Software Quality for High Energy Physics"; Computer Physics Communications; 1989
  16. Waterman,D. A Guide to Expert Systems; Addison Wesley; 1986
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  21. Marlevede,P.; Vanthienen,J. "A Structured Approach to Formalization and Validation of Knowledge"; International Conference on Developping and Managing Expert Systems Programs; Washington, USA; Outubro1991
  22. Mengshoel,O.J.; Delab,S. "Knowledge Validation: Principles and Practices"; IEEE Expert; Junho 1993
  23. Oliveira,K.M.; Werneck,V.M.; Rocha,A.R. "Definição dos Requisitos de Qualidade de um Sistema Especialista em Cardiologia"; IV Congresso Brasileiro de Informática em Saúde; Porto Alegre; outubro 1994
  24. Oliveira,K.M.; Werneck,V.M.; Rocha,A.R. "Qualidade de Sistemas Especialistas"; Simpósio Brasileiro de Engenharia de Software - Workshop Qualidade de Software; Curitiba, outubro 1994
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