A anestesia interfere com inúmeros mecanismos básicos de defesa do paciente, incluindo a percepção da dor, a habilidade de se mover, respirar, controlar a função hemodinâmica, etc. Muitos agentes anestésicos, por exemplo, deprimem o coração e o tônus cardiovascular, podendo provocar arritmias cardíacas, ou precipitar eventos fisiológicos catastróficos, tais como choque anafilático, hipertermia maligna e choque. Além disso, mesmo sendo de ocorrência rara, diversos problemas de funcionamento e falhas do equipamento durante os procedimentos de monitoração e anestesia podem potencialmente colocar em risco a saúde e até a vida do paciente. O paciente em estado inconsciente é totalmente dependente do anestesista, que deve antecipar, observar e tratar as complicações anestésicas e cirúrgicas.
Embora a prática anestésica seja geralmente considerada "rotina", ela requer vigilância e habilidade para reconhecer e resolver os problemas que podem levar o paciente ao risco de vida imediato. Em conseqüência, a prática da anestesia requer diversas habilidades por parte do profissional, tais como: capacidade de assimilação de conceitos complexos, destreza manual, pensamento e reflexos rápidos, etc. Para a administração de anestesia em todas as suas etapas, desde o pré-operatório até a recuperação anestésica, sem contar com o ato cirúrgico principal, é necessário e imprescindível o conhecimento extenso de anatomia, fisiologia, farmacologia e farmacocinética, destreza para entubação e cateterização venosa e arterial, destreza para monitorização invasiva, e respostas rápidas para os eventos adversos. Para se tornar um bom anestesista, é necessário adquirir, desenvolver e manter essas habilidades e conhecimentos.
Historicamente, a prática anestésica tem sido ensinada com base na relação direta entre instrutor e aprendiz, pela qual o aprendiz acompanha anestesias reais em pacientes, sob a supervisão de um instrutor mais experimentado, e, gradativamente, passa a realizar todas as etapas necessárias para o aprendizado autônomo. Essa abordagem apresenta diversos problemas, tais como um risco maior para o paciente, potencial interferência com a eficiência da cirurgia, tempo maior para aprendizado de todas as técnicas, etc. Entretanto, o maior problema consiste na impossibilidade ética de se provocar diversos tipos de acidentes instrumentais, farmacológicos e fisiológicos, com a finalidade de se treinar e testar habilidades específicas de resolução de problemas. Além disso, embora o risco da má prática anestésica possa levar à alta morbidade e mortalidade, como a incidência geral de complicações é menor do que 1 para 10.000 casos, muitos anestesistas e residentes podem passar anos sem nunca terem sido expostos às complicações graves e emergências anestésicas, tendo somente o conhecimento da literatura e não a vivência real.
Nos últimos anos, em muitos países desenvolvidos, vem ocorrendo uma verdadeira revolução no treinamento dos médicos anestesistas. Novas tecnologias permitem que os aprendizes pratiquem a anestesia utilizando simuladores computadorizados, de forma a permitir um número muito maior de seções práticas em menor tempo, em comparação com as técnicas de ensino tradicionais. A simulação por computador permite também vencer o problema ético principal referido acima, ao facilitar a experimentação repetitiva com diversos tipos de falhas, intercorrências e mal funcionamento do equipamento, e treinar o anestesista usando fenômenos e acidentes de ocorrência rara.
O presente artigo faz uma breve revisão dessa nova abordagem no ensino da anestesiologia.
Em 1960, em seu trabalho pioneiro com SIM I, um manequim controlado por computador para simulação anestésica, Denson e Abrahamson escolheram o treinamento da seqüência de entubação. Segundo esses autores, "o uso do simulador para planejamento e aumento gradual da dificuldade dos problemas a serem resolvidos pelo aluno, além da repetição ilimitada de cada fase dos procedimentos a serem aprendidos, e imediata retroalimentação quanto ao desempenho do aluno, permite que cada um aprenda a sua própria maneira e a sua própria velocidade". A partir deste estudo pioneiro, outros autores desenvolveram sistemas simulados visando todo o ato anestésico, tais como o sistema CASE, de Gaba e DeAnda (1988), que simula toda a sala cirúrgica; e o ASR (The Anesthesia Simulator-Recorder) de Schwid e O'Donnell (1990). O trabalho desses e de outros autores permite-nos visualizar um vasto campo de ação e desenvolvimento, onde estamos apenas nos primeiros passos.
Atualmente, os simuladores desenvolvidos dividem-se em dois grandes grupos, havendo já no mercado diversos produtos comerciais em ambas as categorias:
Em alguns sistemas mais sofisticados, aparece na tela até mesmo uma imagem do paciente, com possível indicação de sinais e sintomas referentes ao nível da anestesia, cianose, etc. Os sinais vitais, por sua vez, podem ser gerados em tempo real pelos modelos matemáticos. Essa interface tem por objetivo aproximar a simulação da situação real a ser enfrentada e de facilitar o manejo por pessoas com pouco conhecimento em informática.
Em adição à cirurgia, o software pode introduzir diversos problemas, tais como: hemorragias mecânicas, diminuição abrupta do retorno venoso (por posição ou tracionamento da veia cava) atelectasias, pneumotórax, embolias aéreas e outros, reações alérgicas, falhas de equipamento, dosagens excessivas, etc. Os incidentes críticos podem ser criados pelo examinador-professor ou pela própria máquina, a partir de uma listagem interna.
Com o uso do mouse e placa de geração de som, o sistema pode simular o exame do doente, comunicar-se com o cirurgião, controlar a ventilação, perceber a entubação esofágica, examinar vias aéreas, perceber perfusão do doente, coloração (anemia, icterícia, cianose), administrar fluidos e medicações, além de reanimar o paciente com parada cardiorespiratória, desfibrilar e usar drogas de ressuscitação.
Bons sistemas simuladores incluem um arquivo farmacológico, contendo parâmetros de farmacocinética e farmacodinâmica de dezenas de drogas anestésicas e não anestésicas de uso rotineiro na prática clínica. O arsenal de equipamentos pode incluir bomba de infusão rápida de sangue, cardiodesfibrilador, tromboelastógrafo, balão intraaórtico, biopump, etc). Muitos simuladores permitem armazenar também um banco de dados contendo casos de pacientes reais ou fictícios a serem anestesiados (dados clínicos, peso, altura, patologia principal, patologia associadas, idade, sexo, exames, etc.) assim como a cirurgia a ser realizada, a partir de parâmetros criados pelo docente.
Cada droga no simulador pode afetar o nível de conciência, analgesia, bloqueio neuromuscular, frequência cardíaca, resistência vascular sistêmica, contratilidade miocárdica, tônus venoso, frequência respiratória, curva de CO2 expirado, apnéia, bem como diversas outras variáveis com propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas. Os modelos farmacológicos, para maior realismo, podem levar em consideração a interação de drogas, tais como agonismo, antagonismo e sinergismo.
Além de simular os sistemas fisiológicos com grande realismo, os simuladores anestésicos geralmente apresentam uma vantagem adicional em relação ao treinamento em anestesias reais: gráficos especiais podem ser exibidos no vídeo, mostrando a evolução temporal dos níveis de diversas drogas, simultaneamente, em qualquer compartimento orgânico desejado (alvéolos, sangue, compartimento intracelular, fígado, rins, urina, cérebro, etc.), permitindo assim uma melhor compreensão quanto aos fenômenos subjacentes à anestesia e às suas intercorrências.
Diversas empresas oferecem produtos desse tipo. O mais sofisticado é fabricado pela empresa americana CAE-Link, do mesmo grupo que fabrica os sofisticadissimos simuladores para treinamento de pilotagem aérea (P.O.Box 1237, Binghamton, NY 13902, USA - Tel. 001-607-721-5849 e fax 001-607-721-5574).